Emily Benedict vai para Mullaby,
na Carolina do Norte, na esperança de resolver pelo menos alguns dos mistérios
que rodeiam a vida da mãe. Porém, assim que Emily entra na casa onde a mãe
cresceu e trava conhecimento com o avô, cuja existência sempre desconhecera,
descobre que os mistérios não se resolvem em Mullaby, são um modo de vida: o
papel de parede muda de padrão para se adequar ao estado de espírito do
ocupante do quarto, luzes inexplicáveis dançam pelo quintal à meia-noite, e uma
vizinha, Julia Winterson, cozinha esperança sob a forma de bolos, desejando não
apenas satisfazer a gulodice da cidade mas também reacender o amor que receia
ter perdido para sempre. Mas porque desencorajam todos a relação de Emily com o
atraente e misterioso filho da família mais importante de Mullaby? Ela veio
para a cidade a fim de obter respostas, mas tudo o que encontra são mais
perguntas. Um bolo de colibri poderá trazer de volta um amor perdido? Haverá
mesmo um fantasma a dançar no quintal de Emily? As respostas não são nunca o
que esperamos, mas nesta pequena cidade de adoráveis desadaptados, o inesperado
faz parte do dia-a-dia.
"Emily recordava-se de que a mãe nunca a deixava ir ao centro comercial devido à competição descarada que aí se fomentava para se ter algo tão bom ou melhor que o vizinho do lado. Dulcie sempre afirmara que a roupa não devia nunca ser tida em conta na determinação do valor de uma pessoa."
"Era natural, supunha, ficar tensa perto dele. Os nossos pares, quando somos adolescentes, serão para sempre os guardiães do nosso embaraço e arrependimento. Era uma das grandes injustiças da vida o facto de podermos progredir nela e sermos felizes e realizados, mas assim que encontramos um colega de liceu tornamo-nos de imediato a pessoa que éramos na altura, não a pessoa que somos no momento."
María Dolz, uma solitária editora
de livros, admira à distância todas as manhãs aquele que lhe parece ser o
"casal perfeito": o empresário Miguel Desvern e a sua bela esposa
Luísa. Esse ritual quotidiano permite-lhe acreditar na existência do amor e
enfrentar o seu dia de trabalho. Mas um dia Desvern é morto por um mendigo mentalmente
perturbado e María aproxima-se da viúva para conhecer melhor a história. Passa
então de espectadora a personagem, vendo-se cada vez mais envolvida num enredo em que nada é o que parecia ser e em que cada afecto pode converter-se no seu
contrário: o amor em ódio, a amizade em traição, a compaixão em egoísmo. A
história, narrada na primeira pessoa por María, sofre as oscilações dos seus
estados de espírito, dos seus "enamoramentos", evidenciando que todo o relato é tingido pela subjectividade de quem o conta. Ao mesmo tempo, a presença
incómoda dos mortos na vida dos que ficam é o tema que perpassa este romance à
maneira de um motivo musical com as suas variações. Para desdobrar e reverberar
esse mote, Javier Marías entrelaça no seu enredo referências a obras clássicas da
literatura, como "Os três mosqueteiros", de Dumas;" Macbeth", de Shakespeare e,
sobretudo, o romance "O coronel Chabert", de Honoré de Balzac. Sustentando com maestria uma voz narrativa
feminina, o autor eleva aqui a um novo patamar a sua habilidade para nos envolver
no mundo interior das suas personagens. Com 'Os Enamoramentos', obra de plena
maturidade literária, Javier Marías reafirma-se como um dos maiores
ficcionistas da nossa época.
"Tarde para quê, pergunto eu. A verdade é que não sei. É que só quando alguém morre é que pensamos que já se fez tarde para qualquer coisa, para tudo - e mais ainda para o esperarmos -, e nos limitamos a dar-lhe baixa. Aos nossos próximos também, ainda que nos custe muito mais e os choremos, e que a sua imagem nos acompanhe em espírito enquanto andamos pelas ruas e em casa, e embora acreditemos durante muito tempo que havemos de nos acostumar. Mas sabemos desde o princípio - desde que morrem - que já não devemos contar com eles, nem sequer para as coisas mais insignificantes, para um vulgar telefonema ou para uma pergunta pateta («Deixei aí as chaves do carro? A que horas saíam hoje as crianças?»), para nada. Nada é nada. Na realidade é incompreensível, porque pressupõe que temos certezas e isso é avesso à nossa natureza: a de que alguém já não tornará a chegar, nem a dizer, já nunca mais dará um passo - nem para se aproximar nem para se afastar -, não mais olhará para nós nem desviará a vista. Não sei como resistimos a isso, nem como recuperamos. Não sei como nos esquecemos de vez em quando, quando já passou o tempo e nos afastou deles, que ficaram imóveis."
"Sim, há os que não suportam a desgraça. Não por serem frívolos ou cabeças ocas. Sofrem-na quando os atinge, claro está, como qualquer um certamente. Mas estão prontos a sacudi-la depressa, e sem pôr grande empenho, por uma espécie de incompatibilidade. Faz parte da sua natureza serem leves e risonhos e não verem prestígio no sofrimento, ao contrário da maior parte da pesada humanidade, e a nossa natureza permite-nos sempre consegui-lo, porque quase nada a pode torcer nem quebrar. Talvez a Luísa fosse um mecanismo simples: chorava quando a faziam chorar e ria quando a faziam rir, e uma coisa podia seguir-se a outra sem solução de continuidade, ela respondia ao estímulo que calhasse. Ainda por cima, a simplicidade não está de relações cortadas com a inteligência. Eu não tinha dúvidas de que ela possuía esta última."
Gostei muito de ler este livro; foi o melhor que li este ano.
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